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Justiça reconhece multiparentalidade em caso de bebês trocados em Goiás e define convivência conjunta entre duas famílias
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Troca das crianças foi descoberta quando elas estavam com três anos; especialistas analisam impactos jurídicos e emocionais do caso
A história dos dois bebês trocados ao nascer em uma maternidade na Região Metropolitana de Goiânia, em Goiás, ganhou um novo capítulo nas últimas semanas, com o reconhecimento da multiparentalidade e a definição de um regime de convivência entre as duas famílias.
Após a decisão que determinou o retorno das crianças às famílias biológicas, a Justiça autorizou que os meninos, hoje com quatro anos, tenham os nomes dos quatro pais em suas certidões de nascimento. Além disso, foi estabelecido um regime de convivência detalhado para assegurar a participação conjunta das duas famílias na criação e no cuidado com os filhos, que define:
- De segunda a sexta-feira: permanência com os pais biológicos;
- 1º fim de semana de cada mês: convivência conjunta na casa dos pais socioafetivos;
- 2º fim de semana: convivência conjunta na casa dos pais biológicos;
- 3º fim de semana: cada criança permanece separadamente com seus pais biológicos;
- 4º fim de semana: cada criança permanece separadamente com seus pais socioafetivos.
Segundo a Justiça goiana, a solução busca garantir o melhor interesse das duas crianças e preservar os vínculos afetivos estabelecidos com os pais que as criaram desde o nascimento, sem afastá-las do direito à convivência com suas famílias de origem biológica.
Diretora nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a juíza de Direito Angela Gimenez, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso – TJMT, conferencista na área do Direito das Famílias e Sucessões, destaca que a decisão da Justiça de Goiás é emblemática e sensível por refletir a valorização dos vínculos afetivos e o respeito à dignidade humana, princípios centrais do Direito das Famílias contemporâneo.
“Ao reconhecer a multiparentalidade no caso dos bebês trocados, o Judiciário acolheu não apenas a realidade biológica, mas também a história vivida e o afeto construído entre as crianças e os pais que as acolheram desde o nascimento”, afirma.
Segundo ela, além de estar fundamentada no princípio do melhor interesse da criança, previsto na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, a decisão também considera os princípios da afetividade, da solidariedade familiar e da paternidade responsável.
“Ao permitir que as crianças mantenham vínculos com ambos os casais – os genitores biológicos e os socioafetivos –, o Judiciário assegura a proteção integral e reconhece as múltiplas formas de parentalidade presentes na realidade social brasileira”, diz.
Exercício de maturidade
Angela Gimenez afirma que, embora a multiparentalidade seja uma realidade jurídica crescente, ela não está isenta de desafios. A especialista aponta que, no âmbito do Judiciário, ainda falta maior uniformização, como a divisão de direitos e deveres entre os pais, especialmente no que diz respeito à autoridade parental, guarda, alimentos e herança.
“As famílias que vivem situações de multiparentalidade precisam lidar com a reorganização afetiva, o reconhecimento mútuo das funções parentais e a construção de um diálogo respeitoso e colaborativo. Trata-se de um exercício de maturidade, empatia e compromisso com o bem-estar da criança, que deve sempre estar no centro das decisões, e não se tornar motivo de disputas ou ressentimentos”, diz.
A especialista esclarece que decisões como a da Justiça de Goiás exigem acompanhamento psicossocial contínuo, escuta ativa das crianças ao longo do desenvolvimento e uma abordagem humanizada por parte de todos os envolvidos.
“A convivência compartilhada em arranjos multiparentais requer um planejamento minucioso e constante cooperação entre os adultos. O detalhamento do regime de convivência é um ponto positivo, pois oferece previsibilidade e segurança para as crianças. Ele permite que cada figura parental exerça seu papel de forma concreta e respeitosa, criando espaço para o fortalecimento dos vínculos afetivos sem a sobreposição de funções”, pontua.
Ela acrescenta que, na prática, para que a multiparentalidade funcione de forma saudável, é fundamental haver comunicação transparente, resolução pacífica de conflitos e flexibilidade para ajustes à medida que as necessidades das crianças evoluem.
“A presença de mediadores familiares, terapeutas ou equipes interdisciplinares pode ser extremamente benéfica nesse processo. O foco deve estar sempre na construção de uma convivência estável e harmoniosa, em que as crianças se sintam pertencentes e acolhidas por todas as figuras parentais”, avalia.
Famílias contemporâneas
A magistrada do TJMT considera que a decisão representa um avanço importante no fortalecimento da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva como institutos legítimos do Direito das Famílias brasileiro, ao reafirmar que “a parentalidade vai além da origem biológica e se fundamenta, sobretudo, na afetividade, no cuidado e na convivência contínua, elementos já consolidados pela doutrina, pela jurisprudência e por normativas como o Provimento nº 63/2017
Além disso, Angela Gimenez considera que a decisão contribui para consolidar a visão contemporânea e plural das famílias, em consonância com os princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, a afetividade e o melhor interesse da criança e do adolescente.
“Reconhecer dois pais e duas mães no registro civil é, sem dúvida, uma forma de proteger o vínculo afetivo e a identidade da criança, especialmente em casos como o da troca na maternidade, em que o rompimento dos laços afetivos formados precocemente poderia causar sofrimento psíquico irreparável”, afirma.
No entanto, ela ressalta que a decisão impõe um limite, já que o provimento do CNJ estabelece que o registro de nascimento pode conter, no máximo, dois vínculos maternos e dois paternos.
“Isso significa que, uma vez reconhecida essa multiparentalidade quadripartida, fica vedada qualquer inclusão futura de outra figura socioafetiva, mesmo que surjam vínculos afetivos significativos posteriormente. Esse aspecto precisa ser ponderado, pois, embora a decisão seja progressista e protetiva, ela também cristaliza uma composição parental que pode não comportar novos arranjos familiares no futuro, gerando possíveis entraves jurídicos e afetivos”, conclui.
Entenda o caso
Os dois meninos nasceram no mesmo dia de outubro do ano de 2021, em uma maternidade na Região Metropolitana de Goiânia, com diferença de 14 minutos um do outro. O primeiro nasceu às 7h35 e o segundo, às 7h49. Os partos foram feitos em centros cirúrgicos diferentes, por equipes médicas distintas e os dois foram levados para uma mesma sala. Os pais não puderam acompanhar a partir daí por causa da pandemia. Segundo o inquérito policial, foi nessa sala que os bebês foram trocados.
A desconfiança da troca começou depois que um dos casais se separou e o pai solicitou um exame de DNA para comprovar a paternidade do filho. A ex-mulher também quis fazer o exame, realizado em outubro de 2024. Na ocasião, o laboratório pediu uma contraprova porque a criança não era compatível com nenhum dos supostos genitores.
A mãe então se lembrou da família que estava na maternidade no mesmo dia do nascimento do filho e conseguiu entrar em contato com eles. Após contar o que houve, o segundo casal também fez o exame de DNA com o filho, que apresentou resultado incompatível.
Os casais fizeram os exames que comprovam que as crianças com quem conviveram não são seus filhos biológicos. Todos fizeram testes de DNA, os quais confirmaram a troca. Em dezembro de 2024, a polícia ouviu várias testemunhas durante a investigação. O inquérito apontou que a troca aconteceu dentro do berçário.
Diferenciação
A psicanalista Giselle Câmara Groeninga, Diretora de Relações Interdisciplinares do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, destaca que, embora a jurisprudência não diferencie pais biológicos e socioafetivos para fins de direitos, essas figuras não são equivalentes nos planos psicológico, relacional e afetivo.
“As relações são únicas, e é importante considerar que, no plano psicológico, existem distinções fundamentadas em diversos fatores. A afetividade e a imagem que os filhos constroem de cada mãe e pai – mesmo quando há mais de um – dependem de elementos objetivos e subjetivos, sendo a convivência o mais relevante, embora não o único determinante”, explica.
Segundo ela, os fatores que influenciam as distinções psicológicas entre os pais e as mães mudam ao longo do desenvolvimento da criança, independentemente do número de figuras parentais.
“Existem fases em que a mãe é percebida como a figura central de afeto positivo e amoroso, enquanto o pai assume maior importância como autoridade e alvo de sentimentos mais conflituosos, como a rivalidade. Em etapas posteriores, essa dinâmica tende a se inverter, até que a criança alcance maior autonomia e uma visão mais equilibrada, com menor idealização de ambos os pais”, diz.
De acordo com a especialista, as diferenças na qualidade dos afetos e dos relacionamentos, assim como suas nuances, não diminuem a importância de cada um dos pais. “Elas apenas relativizam os vínculos, criando uma espécie de hierarquia relacional, que também passa a depender do reconhecimento e de fatores mais objetivos.”
Desafio complexo
Giselle Groeninga ressalta a importância de buscar objetividade dentro da subjetividade presente nas questões familiares, equilibrando igualdade, equidade e respeito às diferenças – desafio que se torna ainda mais complexo em contextos de multiparentalidade, diz a psicanalista.
“Um fator importante nesses casos é a aceitação da situação de fato, que inclui a coexistência da família biológica – que pode também assumir caráter afetivo –, somada, em alguns casos, à família afetiva, composta por madrasta e padrasto, e à família socioafetiva, quando há o reconhecimento legal do vínculo não biológico”, observa.
Para ela, é importante diferenciar os tipos de vínculo que podem ou não se somar: biológico, afetivo e socioafetivo. “Essa distinção ajuda a preservar a funcionalidade das famílias, permitindo definir claramente os lugares, papéis e funções, mesmo quando mais de uma pessoa os ocupa e exerce.”
No caso de Goiás, ela destaca a importância da elaboração dos pais após a constatação da troca dos bebês, ressaltando que a parentalidade socioafetiva depende tanto da vontade da mãe e do pai quanto do reconhecimento social dessa relação.
“É justamente da elaboração psíquica da vontade dos membros da família – que pode ser legalmente reconhecida no caso da socioafetividade – que dependem os efeitos futuros no psiquismo das crianças”, afirma.
Esforço comum
Quanto à convivência, Groeninga argumenta que o ideal é que ela seja “relativamente harmônica”. “Digo, relativamente, pois ela nem sempre o é, uma vez que os conflitos e sua transformação lhe são inerentes. E, no caso, em que há dois núcleos familiares, a convivência exigirá um esforço mental, relacional, extra por parte das famílias.”
Segundo ela, “trata-se de um esforço que, sem dúvida, se mostrará compensador, especialmente se comparado aos casos em que indivíduos que desempenham papéis importantes nos vínculos são afastados; nesses contextos, a idealização das figuras ausentes e a culpabilização daqueles responsáveis pelo afastamento são mais do que prováveis”.
A psicanalista diz que a idealização e a culpabilização dos pais fazem parte do desenvolvimento psíquico dos filhos, mas devem se restringir a uma fase específica. Ela explica que, quando esses sentimentos encontram obstáculos na realidade, tendem a se cristalizar, prejudicando a individuação e a autonomia psíquica da criança.
“Por parte dos pais, se a situação não for adequadamente elaborada, as dificuldades naturais de qualquer convivência podem intensificar ciúmes, rivalidades, transferência de responsabilidades e a culpabilização – seja dos pais socioafetivos, seja dos da família biológica”, pontua.
E acrescenta: “A multiparentalidade inspira uma reflexão sobre as dificuldades enfrentadas em casos de divórcio ou dissolução de união estável, além de nos levar a repensar conceitos e categorias relacionados aos lugares, papéis e funções que tradicionalmente são atribuídos a figuras antes consideradas únicas: mãe e pai”.
Por fim, Giselle Groeninga estabelece um paralelo entre o caso dos bebês trocados em Goiás e o filme japonês “Pais e Filhos” (2013), do diretor Kore-Eda Hirokazu, que, segundo ela, destaca a necessidade de cada família elaborar a situação, e lidar com resistências, surpresas e decepções.
Na produção, um homem descobre que seu filho foi trocado na maternidade e precisa decidir entre ficar com o filho biológico ou com o garoto que ele e sua esposa criaram durante seis anos.
“O filme mostra que o mais importante para os filhos é o reconhecimento dos vínculos afetivos já existentes, muitas vezes há anos, e a sua preservação, respeitando-se as diferenças – algo que cabe tanto aos pais quanto ao sistema de Justiça. Uma boa elaboração da situação é fundamental para uma relativa harmonia e tende a contribuir positivamente para a construção da identidade dos filhos que possuem mais de dois pais, exigindo deles um trabalho cuidadoso de elaboração psíquica”, analisa.
Por Guilherme Gomes
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